sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Uma história de Halloween

Está quente hoje, não é? ainda bem que tem essa ventania aqui, no morro!
Aproveitando, vou contar uma história de Halloween para vocês, mas vou contar bem baixinho para ninguém ficar com medo. Ah, alguns personagens eu não vou descrever, fica a gosto do freguês!
Era um casarão vermelho no cume da colina em meio a um mundão de eucalipto que ficava bem em frente ao nosso prédio, pertencia a Seu Teixeira Velho que estava sempre querendo vender mas não conseguia por causa da fama de casa mal-assombrada. A prefeitura o alugava para fazer exposição de artesanato todo Festival de Inverno, eu sempre ia ver mas nunca vi fantasma nenhum, só um vento gelado que partia de uma parede vindo ninguém sabe de onde e antes de ir a pessoa tem de ir ao banheiro porque se desse vontade de fazer xixi não podia porque os banheiros são trancados. Na verdade, o casarão havia sido construído por um oficial da Marinha inglesa que saiu fugido de lá por motivos pouco piedosos que as pessoas se abstinham de falar - eu nunca soube de nada, mas tanto faz, é coisa lá deles e já faz tanto tempo, final do século XIX e não há porque mexer nisso.  O figurão, Capitão Anthony Nesmith, para finalizar sua obra e aplacar sua saudade, mandou vir de Londres um velho portão de cemitério que pode ser visto ainda hoje, única condição imposta à Prefeitura é a sua pintura e conservação durante o Festival, além, é claro, do valor do aluguel.
   Aqui, no prédio meus amigos são o Prof. Luís André, ensina inglês, português e espanhol em escolas e ainda italiano em aulas particulares; os chamados Evangelistas, Mateus, Marcos, Lucas e João, filhos de D. Mariza e Seu Joaquim, uma escadinha de dois em dois anos, o mais velho, Mateus, tem onze, daí se calcula o resto; as meninas do Primeiro triunvirato, Cesônia, Pompéia e Licínia, filhas de D. Gemima e Seu Teófilo, a primeira figurava como uma paixão  platônica de Mateus, o que provocava grande desgosto no menino que achava-se secretamente apaixonado pela jovem Pompéia, e as do Segundo Triunvirato: Antonia, Gaia e Emília, filhas de D. Cristina e Seu Antenor, outra escadinha mas, de três em três anos, a mais velha com 13 anos e   eram primas das três primeiras. Sim, e D. Sônia, baixinha, na faixa dos quarenta quase cinquenta, solteirona alegre a quem chamavam de “Alvin e os Esquilos“ sem ela saber, não porque ela gostou dos filmes mas porque sua boca era pequena e os dentes da frente eram grandes e eles achavam parecido com uma boca de esquilo. Vale ressaltar que neste prédio moravam muitos professores, haviam um garoto chamado Baskara, aquela fórmula de resolver equações, outro chamado Newton, outro chamada Jorge Amado e por aí vai.
   Nossa história começa quando o Prof. Luis André resolveu comemorar o Halloween - acho que escrevi certo - ele dizia que não tinha nada de mais, que, como as Festas Juninas, o Natal e o Carnaval eram festas importadas da Europa uma a mais não teria tanto problema, o ruim é que as crianças - e eram muitas - bagunçavam tanto o salão do prédio que o síndico, Sr. Manoel Barros, fez uma reunião dizendo que não se podia mais fazer festas a não ser as de Carnaval e Passagem de Ano e as de aniversário. Daí, as crianças choraram bastante porque é a época em que se sentem cheias de magia, aquela coisa das fadas, das bruxas, histórias de terror, de fazer simpatias e pequenos sortilégios que nunca davam certo porque se nos países do norte era Halloween, aqui é Beltane. E choraram tanto que o Prof. Luis André decidiu falar com Seu Teixeira Novo para alugar o espaço na casa mal-assombrada, aí seria o dez do dez, o clima era genial, além do mais ninguém nunca havia relatado nada de sobrenatural desde o início do século, os fantasmas, parece-me, ficaram no século XX. Mas ele fez isso mais por si mesmo porque, depois que fez uma pós-graduação em arte nos Estados Unidos, voltou encantado pela festa e ficou mais triste do que as crianças.
Pronto, está aí. Aluguel combinado e pago, era planejar a festa, para tal o Prof. Luis André vai à feira e compra uns tecidos brancos de carregação (tecido de má qualidade) para fazer a decoração fantasmagórica do salão, e compra também sacos e sacos de balas, marshmallow, chocolate, maçãs, prêmios para os vencedores dos jogos, pipocas, uma série de coisas dispensáveis para quem está numa dieta braba como eu e as imprescindíveis abóboras que aqui nós chamamos de jerimum. É claro que todos os pais ajudaram, como em todos os anos, uns reclamavam porque era “festa estrangeira” mas para não entristecer os pequenos acabavam concordando.
   O primeiro a dar fé que alguma coisa não estava no esquema foi o Coronel P. Lúcio do Norte, meu gato, chefe da quadrilha de felinos do prédio. Ao ver o Prof. Luis André com aquele monte de pano fez cara feia, mostrou as unhas e disse:
   - Fsssssssssttttttt! - ameaçou e correu para longe, e nas vezes que passava pelo corredor do andar do apartamento do Prof. Luis André, andava bem rente à porta do apartamento da frente, onde o segundo Triunvirato morava.
Passou-se. Naquela noite ele foi ao apartamento de Alvin e os Esquilos para fazer os fantasmas, ele cortava os buracos que seriam os olhos e ela fazia as costuras para o tecido não desfiar, foi aí que sentiu que o tecido estava pegajoso. 
   - Está pegajoso - disse Alvin e os Esquilos esfregando os dedos. - Ainda não lavou os tecidos, Professor?
   - Não, era o que ia pedir para a senhora fazer, a minha máquina de lavar está com defeito, chamei Seu Pimenta mas ele disse que só pode vir amanhã. - respondeu ele meio envergonhado de tanto pedir-lhe favores.
   Mas Alvin e os Esquilos nutria uma paixão secreta pelo moço que era bem mais moço do que ela e era uma oportunidade de estar com ele e agradá-lo.
   - Claro, não é trabalho algum, o senhor já faz tanta coisa pelas crianças do prédio! 
   No dia seguinte encontrei Alvin e os Esquilos esperando o elevador, estava abatida, assustada até. Olhou para mim e disse:
   - Minha filha, estou que não me agüento, não sei como vou dar aula, tive um pesadelo horrível...meu Deus! Que tenha sido um pesadelo mesmo.
   E me contou que depois que o Prof. Luis André saiu, pôs os “fantasmas” para lavar na máquina, eles saíram num branco radiante, eram oito “fantasmas”, ela os pôs na área de serviço, todos, pendurados no varal, depois fez sua toalete e foi dormir. Lá pelas tantas da madrugada acordou de sobressalto a sentir um cheiro forte de sangue e se sentindo molhada. Bom, uma mulher que acorda se sentindo assim numa escala menor não é de assombrar, mas daquele jeito? Ela disse que acendeu a luz da mesinha de cabeceira e viu que sua camisola estava empapada de sangue, o lençol de flores miúdas parecia todo vermelho, então ela olhou para o lado e os viu, parados, como se olhassem para ela, os oito “fantasmas” igualmente ensanguentados e ouviu vozes estranhas numa luta para decidir de quem era alguma coisa. Que ela não conseguiu entender. Quase entrou em pânico, não conseguiu gritar, por mais esforço que fizesse, então piscou e corajosamente olhou  para o lado, o quarto estava vazio, tudo limpo como de costume, a janela estava aberta e o vento manso balançava a cortina para lá e para cá.
- Foi um sonho ruim mesmo. - falei, tentando confortá-la.
   - Foi - disse ela - É esta certeza que não me deixa enlouquecer, parecia tão real! Mudando de assunto: você já terminou as lembrancinhas da festa?
   - Quase, fiz bruxinhas para as meninas e bardos harpistas para os meninos, de resina. - respondi - Porque não tira o dia de folga? Hoje é sexta-feira.
   - Não, eu vou e venho logo, ainda temos de esculpir as abóboras, mas ainda tem três dias para a festa, não podemos  decepcionar as crianças.
   No mesmo dia, Seu Pimenta foi ver a máquina de lavar do Prof. Luis André e o encontrou pálido como um lençol pois desde a noite anterior nada lhe segurava no estômago, tentou reagir tomando um chá mas logo se viu em artigo de internamento, o que não podia acontecer e foi ao Hospital D. Moura procurar ajuda. Logo que entrou, Seu Pimenta sentiu uma atmosfera funesta de possessão, quando os vultos perceberam sua presença sumiram nas sombras.
   - Professor, tem muito lilin...- disse.- Pelo amor de Deus!
   Lilin é fantasma.
   - É por isso que suas coisas estão se quebrando e o senhor está com esse embrulho no estômago! - continuou.
   Mas o moço era de espírito prático, não acreditava em fantasmas, apenas sorriu.
   - Bobagem, Seu Pimenta! Eu devo é ter comido alguma coisa que não devia, nesta 
pressa de terminar a decoração da casa. Além do mais, isso de morrer e voltar não existe, para mim, morreu, acabou.
   - Mas professor, não é porque o senhor não acredita não quer dizer que não exista. É verdade que o “Raloínho” - (ele não sabia dizer Halloween e eu demorei um bom tempo para aprender a escrever) - este ano vai ser lá no casarão do inglês Papa-Figo?
   - Vai.
   - Professor, o senhor não sabe a história daquele lugar? Dizem que os parentes do inglês lá o enterraram vivo porque ele tinha uma doença feia que o fazia comer fígado de criancinha?
   - São histórias, Seu Pimenta. A verdade é que o Cap. Nesmith tinha hanseníase, naquela época não havia cura, por isso não saía de casa, vivia isolado e infeliz.
   - Mas ele não foi nem enterrado no São Miguel, o túmulo dele lá está vazio amarrado com corrente, tem gente que disse que ele foi enterrado lá e se levantou, tem gente que diz que ele foi enterrado no jardim daquele casarão. Cuidado, viu? Tome uns passes e leve sal para se defender se eles aparecerem. É por isso que Coroné P.Lúcio anda nervoso, os bichos sentem quando tem alma penada por perto.
   - Sim, senhor, farei isso. - disse ele na esperança de que parasse de falar aqueles absurdos.
   Seu Pimenta era um homem simples do povo, mal terminou o fundamental mas possuía uma sensibilidade espiritual extraordinária, quando ele dizia que um lugar estava infectado, tinha razão.
A Festa


   A movimentação do Halloween começava sempre depois do jantar quando as crianças do prédio, devidamente fantasiadas iam fazer suas travessuras e doçuras lá mesmo, a festa ainda não é muito popular então não valia a pena ter portas batidas, caras feias e reclamações dos vizinhos durante toda a noite e no dia seguinte também. Mas era divertido, até os adultos apareciam fantasiados, Seu Martinho, do térreo estava de prontidão em sua porta vestido de Saci, dizia ele que a fantasia lhe caia bem pela falta da perna esquerda, que usava calça de cetim vermelho e camisa com desenhos de folhas por decoro e não queria que as pessoas achassem que ele era pedófilo, mas neste ano houve uma inovação, ele arranjou um fraque e conservou o gorro vermelho.
   - Noite de gala, Saci tem de estar bem vestido.- dizia ajustando a casaca no corpo apoiado em sua muleta.
   D. Carmozina, sua esposa, fez fantasia de Cuca com peruca loura e tudo! Apesar da Cuca ser prima do Saci e não sua esposa.
A festa mesmo, lá no casarão lá pelas nove por causa das crianças pequenas. O recepcionista era o Prof. Luis André fantasiado de Barqueiro do Estige, Caronte, ele pegava nossos convites, dava uma pincelada com uma coisa  vermelha e gosmenta,   então podíamos entrar, desta vez usei a fantasia de  hobbit e quem arrumou meu cabelo foi Alvin e os Esquilos que foi de Minerva McGonnegal, apenas não consegui disfarçar meus pés e tive de calçar sapatos tipo boneca. As crianças correram logo para jardim sem flores pois  o eucalipto não admite a presença de outro vegetal que não seja de sua parentela. Os adolescentes preferiram entrar na casa. A decoração do jardim estava perfeita com aquelas lanternas de abóbora pelo chão e presas aos postes que durante o Festival de inverno recebiam refletores, teias de aranhas com suas proprietárias e um cemitério de mentirinha no lado direito do jardim completavam o quadro. Logo na entrada da casa havia uma escada de madeira e um gato preto embaixo, e bruxas, bruxas em todo lugar!
   Na primeira sala havia um caldeirão enorme, preto, cheio daquelas coisas horríveis que engordam e quando a gente pisava no tapete umas coisas estalavam embaixo como se fossem ossos secos se partindo, Alvin e os Esquilos disse que eram pedaços de pão seco. Sob a lareira um arranjo fantasmagórico com abóboras, crânios iluminados, ossos soltos e os infelizes lençóis-fantasmas pendurados nas paredes. Alguns pais e irmãos mais velhos trabalhavam como garçons, os homens vestidos de Frankenstein e as garotas de Mortícia. E serviam sucos de frutas vermelhas, refrigerantes e salgadinhos e doces em forma de lua, de bruxas, caveirinhas, corujas. Uma loucura! No primeiro quarto estava o barril com as maçãs flutuando na água, no segundo uma televisão para a exibição de filmes.
   Estava tudo muito bem quando um vento gelado varreu as salas, ninguém ligou porque todos nós sabíamos que aquele vento gelado sempre existiu, mas quando os fantasmas saíram das paredes e começaram a voar de uma lado para outro na sala começamos a desconfiar. As portas e janelas fecharam ruidosamente e aquele clima ruim junto a um fedor de coisa morta de muito tempo se fez sentir. Ficamos olhando para aquela confusão, parados sem entender nada até atinar que a coisa não fazia parte da festa. As crianças correram para os braços de suas mães.
   - Jesus! Maria! José! - falei.- Valei-me Nossa Senhora!
   Foi aí que a gente se tocou que os fantasmas estavam procurando corpos para possuir porque não conseguiram nada com o Prof. Luís André e Alvin e os Esquilos, mãos geladas pegavam o pescoço de alguns de nossos amigos, como Antenor, pai de Antonia, as portas abriam e eles eram levados para fora. Os homens lutavam pelas próprias vidas,  por suas famílias e amigos, mas era difícil lutar com forças sobrenaturais, Seu Martinho usava sua muleta para se defender e atacar os inimigos. Depois de sair do estado catatônico, o Prof. Luis André lembrou-se que Seu Pimenta disse que levasse sal, mas ele não levou, o que fazer? Os salgadinhos! Sim! Eles tinham sal e uns, sal demais!
   - Depressa! Joguem salgadinhos neles! - gritou pegando punhados de salgadinhos na cozinha e correndo para fora. 
   Nós o imitamos mas os fantasmas estavam protegidos pelos lençóis, eles se afastavam um pouco mas eram muito fortes e voltavam a atacar nossos amigos. O negócio era puxar os lençóis e descobri-los.
   - Puxem os lençóis! - gritou o Pro. Luis André atirando-se à luta - Puxem os lençóis!
   Juntaram-se à luta Coronel P. Lucio Marley, seus comparsas e alguns cães vadios que ninguém ligava a mínima para eles mas eram bem corajosos, ferozes e ajudaram muito a descobrir os fantasmas. E sabem o que aconteceu? Os fantasmas  se formavam usando folhas, gravetos, terra, tinham um aspecto de pesadelo exalando um fedor insuportável e só os animais conseguiam chegar perto deles e o pior era que a ventania levava nossos farelos de salgadinho para longe e no meio da luta, um dos Coisa Ruim soltou Seu Antenor desmaiado no chão e pegou Antonia que havia jogado farelo conosco, a garota, mesmo apavorada, se debatia.
   - Ela é minha! - disse o Coisa Ruim.
   - Você não vai conseguir nada com isso! - respondeu o prof. Luis André.
   - Esperei muito por esta chance, não vou perder! - disse o Coisa Ruim - Que merda! Será que todo mundo aqui tem o corpo fechado? Mas ela não tem! Ela é minha!
   - Minha filha! - gritou D. Cristina entregando a pequena Emília à irmã e partindo para cima do Coisa Ruim - Solte minha filha, seu monstro!
   - Solte a moça! Solte a moça! - gritou o Prof. Luis André.
   Mas aí, um brilho vindo das sombras fez a cabeça do Coisa Ruim voar e seu corpo desabar, se desfazendo no chão, as luzes apagaram por um momento mas todos viram quando todos os Coisa Ruins foram decapitados por um vulto e as folhas e os gravetos que os formavam foram levado pela ventania. Os pais voltaram para suas famílias, abraçavam e beijavam seus filhos e a iluminação voltou.
   Aquele vulto ficou para do meio do cemitério de mentirinha, uma grande capa com capuz o escondia totalmente, pôs o sabre na bainha e acenou com a mão.
   - Ei, espere! Espere! - disse o Prof. Luis André.
   O vulto, que se ia, voltou.
   - Obrigado por tudo. - disse o Professor em agradecimento.
   - Você deve ter mais cuidado no que faz, trouxe consigo esses maus espíritos para a minha casa. - disse o vulto com um forte sotaque inglês - E deve pedir desculpas tanto a mim quanto a seus amigos.
   - Não, o senhor tem razão, eu peço desculpas...mas, como fui eu?
   - O sangue é algo poderoso Professor Luis André, não adianta lavar, a matéria sai mas os fluidos ficam, não saem nunca, estes panos - aponta os lençóis - teem de ser incinerados para  tomarem uma forma mais segura, estão ligados a gente morta, gente muito ruim.
   - Eu não sabia, apenas os comprei na feira.
   - Sim, não sabia, acredito, mas agora sabe. São bem vindos à minha casa, e não percam mais tempo, incineram os panos, eles apenas se afastaram, vão voltar!
   -  O senhor é o...Capitão Nesmith?!!!
   - Sim, sou eu...ou era eu. Não tenham medo, não é preciso.  Muita gente teve medo de mim quando eu era vivo...minha família então! Vamos lá, vamos lá, livrem-se deste lixo marujos e voltem para a sua festa, é bom ver minha casa iluminada novamente cheia de felicidade, de crianças, homens valentes e belas damas. - disse o galante Capitão.
   Ele era um fantasma, e daí, gente? Era Halloween, quando os mortos estão entre os vivos! E aquele era um morto bonzinho! Aquela atmosfera fedida não existia mais e as crianças é que ficaram encantadas com a presença deles, mesmo sem ver seu rosto. Os adultos não, sabiam da fama de “comedor de criancinhas” que ele carregava e o olhavam enviesado. Os lençóis foram devidamente incinerados na lareira e todos faziam o máximo para que tudo voltasse ao normal. Os cinco cãezinhos de rua foram devidamente alimentados e provocaram uma pequena confusão porque as crianças queriam adotá-los mas seus pais lembravam sempre que o condomínio só aceitava gatos. Coronel P. Lucio do Norte comeu sua parte no festim e se sentou lambendo a pata tranquilamente, imponente, o cara! Então eu cantei mentalmente sua música parodiando o sucesso de Luiz Gonzaga, “Coronel Pedro do Norte”:
  “Coroné P. Lucio do Norte
    É gato forte,
    Coroné do bigodão!
    Amigo do amigo,
    Inimigo do inimigo,
    Miando sim, é sim,
    Miando não, é não...”
   Depois de alguns minutos o Capitão pediu a palavra.
   - Bom, não posso ficar mais é bem cansativo manter-me visível. Honrou-me conhecer a todos. - disse.
  - Capitão, posso lhe pedir mais um favor? - disse Antonia.
  - Milady, um pedido seu é uma ordem. - respondeu ele fazendo uma reverência.
  - Pode nos conta porque ainda está aqui?
  - Ah! Sim! Eu já devia ter feito a minha última jornada mas fui ficando, fui ficando...até agora. Nada me impede de ir, acho que paguei todos os meus pecados. Sou um homem do mar que veio para as montanhas mais distantes que achei de minha terra e que me acolheram com bondade - disse ele e todos ficaram quietos para ouvi-lo - Vendi tudo e construí esta casa, na época era tudo mata, era meu sítio, meu refúgio.
   - E porque o senhor tem esta fama de Papa-Figo? - perguntou o pequeno Lucas.
   - Ah, eu tinha uma doença - disse ele se voltando para o garoto de sete anos - Uma doença que me impedia de sair, de ver a luz, minha família tinha vergonha de mim e quando morri me enterraram lá no jardim onde há o falso cemitério. Eu fui leproso, pequeno, na época não tinha cura.
   - Nossa! Que tristeza! - disse Licínia.
   - Mas se o senhor pode ir para o Céu porque fica aqui? - insistiu Lucas intrigado.
   - Porque me apaixonei a vinte anos por uma jovem, eu a vi no Festival de Inverno, aqui e quando ela veio morar no prédio em frente fiquei muito feliz. Mas...agora compreendo que não posso ter esperanças, ela é viva e tem o direito de viver. - parou um instante - Estou arrependido e lhe peço perdão por não deixá-la viver como poderia ter vivido, Srta. Sônia Brandão.
   Alvin e os Esquilos?
   Todos se voltaram para ela. A pobre cobriu a boca com a mão, primeiro, muito pálida, depois corou intensamente: ser conhecida como “a mulher do fantasma” não era lá muito cômodo, não era nem normal.
   - Fui eu, eu influenciei todos os homens que se aproximavam da senhorita para se afastarem, eu morro de ciúmes. - disse ele corajosamente - E peço-lhe que me perdoe.
   Alvin e os Esquilos se aproximou dele, estava furiosa.
   - Como pode fazer isso se me amava? Olhe prá mim, não seja covarde, se não teve coragem em vida pelo menos seja homem na morte...- disse ela, segurando as lágrimas.
   Ele baixou a cabeça.
   - Não posso, amada, minha face carcomida pela lepra a assustará. - respondeu ele. 
   - Eu insisto! Por favor! Preciso ver seus olhos!
   Ele abaixou o capuz. Sua face era monstruosa, inchadas, as feridas sangravam. Alvin e os Esquilos olhou para ele, viu dois pontos azuis marejados de emoção, dor e terna adoração, ninguém nunca a havia olhado daquela forma, já não tinha mais raiva.
   - Capitão, o senhor não precisa mais conviver com esta maldição, seu corpo terreno não existe mais, só a essência permanece. Eu o perdôo, não se fala mais nisso, vá em paz. - disse ela.
   Ele se ajoelhou aos pés dela e mesmo temendo ser repelido com nojo, beijou-lhe a mão e quando se ergueu não havia mais feridas e sangue em sua face, em vida fora um homem muito bonito, olhos azuis, nariz afilado, lábios carnudos e avermelhados, alto, forte como convinha a um marinheiro nobre de cabelos dourados. Pelo amor do amor que homem lindo...digo, que fantasma lindo!, acho que todas as mulheres suspiraram e os homens se morderam de ciúmes, e aquela farda da marinha inglesa do final do século XIX! Uauuuuuuuu! Bem que ele era digno de um crime passional, mas deixa prá lá, ele já estava morto mesmo!
   Silêncio total. Constrangedor. Quase eterno.
   - As definições de vírus foram atualizadas. - disse Mateus para desfazer as impressões.
   Isso provocou uma gargalhada geral para descarregar a tensão e a festa prosseguiu. Na cozinha só se viam as mulheres sentadas à mesa suspirando:
   - Que pena!...
   - Que pena! Ai, ai!...
   - Que pena...
   Até eu fiquei lá, lamentando. Ai, ai! Que falta de sorte a de Alvin e os Esquilos e seu fantasma apaixonado! 
No final da festa todos foram para casa e deixamos a arrumação para o dia seguinte. O Capitão, acenou para nós de seu portão, agora com um sorriso sereno, mas seguindo sua amada com o olhar. Era Halloween, tudo podia acontecer até Alvin e os Esquilos se sentia mais leve, afinal a culpa de seu fracasso amoroso não se devia a uma suposta incompetência, mas à influência de um espírito apaixonado, aliás, a partir daquela noite ninguém mais a chamou de Alvin e os Esquilos, agora era a Srta. Sônia Brandão. Bom, não sei o que aconteceu ao Capitão, nunca mais o vimos e os sensitivos não sentiram mais sua presença mas isso não quer dizer que ele tenha ido, achamos por bem acabar com a fama de Papa-Figo mas é bem difícil lutar contra algo que existe no imaginário popular há mais de um século, vai levar um bom tempo até que aceitem a realidade. O Prof. Luis André ainda não estava totalmente convencido do sobrenatural e eu é que não entro mais naquele casarão!
   Mas foi divertido, juro, eu me diverti muito.




Do outro lado da cidade um caminhão descarrega fardos de tecidos brancos e verdes. O rapaz joga um destes no chão e do plástico transparente pode-se ler: “CUSTODY HOSPITAL NY”.
   

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